Violência e Pobreza no Cinema Brasileiro Recente. Reflexões sobre a idéia de espetáculo.

Como citar este documento: hamburger, Esther. Violência e Pobreza no Cinema Brasileiro Recente. Reflexões sobre a idéia de espetáculo. En publicacion: Novos Estudos, no. 78. CEBRAP, Centro Brasileiro De Analise e Planejamento: Brasil. Julho. 2007.

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Resumen: O artigo analisa obras recentes de ficção ou documentário que acentuaram a presença visual de cidadãos pobres, negros,moradores de favelas e bairros de periferia no cinema e na televisão brasileiros. Ao trazer esse universo à atenção pública, esses filmes intensificaram e estimularam uma disputa pelo controle da visualidade,pela definição de que assuntos e personagens ganharão expressão audiovisual, como e onde,elemento estratégico na definição da ordem (ou desordem) contemporânea.

Descriptores Tematicos: Cine, Violencia, Pobreza, Marginalidad, Television, Factores culturales, Zonas urbanas, Periferia, Cinema, Pobreza, Violência, Cinema, Poverty, Violence, Marginality, Cultural factors, Urban areas, Periphery, Brasil

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Violência e Pobreza no Cinema Brasileiro Recente

Reflexões sobre a idéia de espetáculo1



Esther Hamburger





Eu sou um mito.Foi a imprensa que fez esse mito.

Eu sou o monstro que vocês criaram.

Márcio Amaro de Oliveira, o traficante Marcinho VP,

aos jornalistas que acompanharam sua prisão.



O crescimento da violência entre forças estatais e

paraestatais assusta.Nos anos 1990,uma série de massacres impetrados

por forças policiais ou de polícia paralela marcou o processo de

redemocratização.Nos anos 2000,o crime organizado passa a desenvolver

ações de guerrilha urbana como “arrastões”,toques de recolher,

ataques a ônibus e delegacias policiais.



Esse tipo de violência não é prerrogativa brasileira.Há uma profusão

de estudos sobre os mais diferentes casos de violência estatal e de

grupos organizados na Colômbia, Venezuela, México, para não falar

do Oriente Médio, talvez o maior barril de pólvora do novo milênio2.

Há relativamente pouca atenção, no entanto, ao elemento que nos

interessa: o papel que a visualidade — especificamente a visualidade

televisiva e cinematográfica — desempenha nessas dinâmicas.Na fronteira

das ciências sociais com os estudos de cinema e televisão, a idéia é

especular sobre os jogos simultaneamente políticos e estéticos que vão

definindo os contornos do universo do que merece se tornar visível.



Filmes tão diversos como Notícias de uma guerra particular (1999),

Palace II (2000), Cidade de Deus (2002), O invasor (2003), Ônibus 174

(2003),Cidade dos homens (2003),entre outros,e recentemente Falcão,

meninos do tráfico (2006), documentário concebido e dirigido por MV

Bill e Celso Athayde,moradores de Cidade de Deus,são alguns exemplos

de obras de ficção ou documentário que acentuaram a presença

visual de cidadãos pobres, negros, moradores de favelas e bairros de

periferia no cinema e na televisão brasileiros.Ao trazer esse universo à

atenção pública, esses filmes intensificaram e estimularam o que

chamo de disputa pelo controle da visualidade,pela definição de que assuntos e

personagens ganharão expressão audiovisual,como e onde,elemento estratégico

na definição da ordem, e/ou da desordem,contemporânea.



Nessa periferia pouco acostumada à exposição, a visibilidade estimulou

uma reação crítica contundente. A epígrafe deste texto cita

Marcinho VP,personagem incógnita do filme de João Salles,que disse

aos jornalistas que cobriam sua prisão: “eu sou o monstro que vocês

criaram”. A frase revela sensibilidade crítica para o jogo de espelhos

que define personalidades mais ou menos estereotipadas e que Guy

Debord, cineasta (ou anticineasta) e filósofo francês cujo livro ficou

conhecido com os movimentos de maio de 1968 na França, definiu

como sociedade do espetáculo.



Este texto levanta questões sobre a adequação do que se convencionou

denominar sociedade do espetáculo para entender ações sociais

performáticas e performances audiovisuais calcadas no real, mecanismos

intrínsecos à produção cultural contemporânea. A idéia é discutir

em que medida o conceito ajuda a compreender disputas pelo controle

e apropriação dos mecanismos de produção da visualidade em situações

de interlocução entre sujeito e objeto,palco e platéia.



Falcão,meninos do tráfico,documentário dirigido pelo rapper MV Bill

e por seu empresário, Celso Athayde, exibido no Fantástico em 19 de

março de 2006,chocou o país.Gravado ao longo de anos em diversas

periferias brasileiras, o documentário foge da expressão limpa, direta

e bem-acabada que vem caracterizando a produção fílmica sobre o

assunto.Falcão sugere, como a situação à qual ele se refere,umembaço.



A repercussão do filme contemplou a discussão sobre a legitimidade

da veiculação na Rede Globo daquelas imagens,colhidas por rappers,

produtores de canções de protesto contra a mídia,moradores da

Cidade de Deus, expoentes da Central Única das Favelas (Cufa)3.O

debate girou em torno da novidade das informações trazidas pelo

filme.A oportunidade da veiculação de um filme exclusivamente sobre

a violência e a ausência de soluções para o problema foram também

temas de discussão4. Pouco se falou sobre o filme em si, ou sobre sua

interlocução com outros trabalhos que na TV ou no cinema romperam

a relativa invisibilidade que encobriu a pobreza e a violência nos anos

1970 e 1980,anos de consolidação da indústria de TV e do mercado de

consumo no Brasil. Pouco se falou das interlocuções de Falcão com

outras realizações televisivas e cinematográficas que a partir dos anos

1990 desencadearam uma sucessão de proposições que reelaboram o

lugar das periferias e favelas no universo virtual do que é visível, lócus

privilegiado da sociedade contemporânea.



Falcão é escuro, cheio de sombras e silhuetas. Planos fechados de

fragmentos do corpo ajudam a criar um clima claustrofóbico. Mãos

disparam foguetes para alertar sobre a presença da polícia,preparam a

droga ou manipulam armas.Pernas e pés se deslocam na noite,hora de

vigília,horário de falcão.Fisionomias deformadas em primeiro plano,

dissolvidas eletronicamente, produzem um efeito pictórico soturno

como uma tela de Francis Bacon.



O borrão que domina os rostos contrasta com a nitidez remanescente

em órgãos dos sentidos como olhos e bocas.Lábios finos e afiados

em faces dissolvidas pronunciam prognósticos monstruosos: “só vou

descansar quando morrer”,diz um garoto prematuramente exausto;“se

eu morrer nasce outro igual a mim”,acrescenta outro menino,ciente da

insignificância de sua individualidade, mas, ao mesmo tempo, da força

perversamente assustadora de sua pessoa, travestida de uma suposta

permanência inevitável dessa infância aberrante.



Híbrido de televisão e cinema, Falcão pode ser interpretado como

mais um elo em uma sucessão de produções visuais que focalizaram as

periferias de diferentes formas e a partir de diferentes pontos de vista.

Sabemos que no Brasil há pouco espaço para documentários — gênero

principalmente televisivo em outros países.Canais a cabo e canais públicos

abrem espaço bastante limitado para a difusão de documentários.



Gravado ao longo de anos, em vídeo digital com estrutura semiprofissional

e qualidade técnica correspondente,o documentário que

hoje conhecemos tem cerca de uma hora de duração. Divulgado na

televisão, o filme foi distribuído em DVD em estrutura informal,com

os créditos do Fantástico. A versão vendida em eventos dos quais os

diretores participam incorpora as vinheta de abertura e conclusão do

principal programa de televisão dominical do país. É como se o filme

fosse o registro de uma ação que inclui a pesquisa registrada em vídeo,

com os meninos nas periferias do Brasil,mas também a veiculação do

trabalho durante quase uma hora sem interrupções em horário nobre

na TV aberta — transmissão inédita pela duração,ausência de intervalos

e pelo fato de que o material resulta de gravação independente,editada

para a TV e aprovada pelos realizadores5.



O filme começa com uma imagem fora do padrão que prevalece no

correr do trabalho. Um plano de Bill dentro de um carro em movimento

em direção a uma estrada. Vemos a placa verde e branca da

estrada sinalizando que estamos em Brasília. O realizador explica o

projeto:mostrar os meninos das periferias brasileiras a partir da perspectiva

deles, como vítimas de uma realidade social cruel.



A imagem nítida, iluminada pela luz do dia e de corpo inteiro de

Bill, contrasta com o embaço que envolve os irmãos falcões, protagonistas

de vidas sombrias, encapsuladas em aventuras na maioria das

vezes fatais. O artista se apresenta como irmão, solidário com os

meninos,mas ao mesmo tempo sujeito de uma trajetória diferente da

deles.Sua iniciativa de filmar e expor o universo dos meninos constrói

uma relação de alteridade no interior mesmo do universo dos meninos

negros moradores das periferias pobres.



MV Bill e Celso Athayde fizeram também dois livros associados à

pesquisa que resultou no filme. Em Cabeça de porco,de 2003, dividem

a autoria com Luiz Eduardo Soares.Falcão,meninos do tráfico, de 2006,

é assinado somente pelos dois.Os relatos em linguagem escrita acrescentam

sumo aos depoimentos do filme.Como um caderno de campo,

aqui os rappers investidos da função de entrevistadores descrevem

lugares, identificam cidades, deixam rolar seu próprio espanto diante

das personagens que conheceram na empreitada.



Os autores expressam sua relação ao mesmo tempo de estranhamento

e reconhecimento do universo das periferias visitadas. No

filme, esse estranhamento se manifesta no contraste entre a figura

nítida, explícita, lícita e vitoriosa de Bill e o embaço que envolve os

meninos do tráfico. No livro, sobretudo no primeiro, os autores revelam

outros aspectos do universo pesquisado, trabalhando a ambigüidade

de sua posição de negros moradores de Cidade de Deus,que não

vivem do “movimento” e constroem relações de alteridade com esse

universo ainda mais explícitas.



A linguagem escrita permite detalhe na descrição de figuras e lugares

sem ameaçar a segurança das pessoas mencionadas.Há uma variedade

de drogas. Há uma variedade de personagens envolvidas com o

processamento e venda dessas drogas que vai muito além dos meninos

retratados no filme. Famílias que trabalham juntas no negócio.

Quando muitos membros da família estão presos, sobra uma mãe ou

uma avó a cuidar da clientela que faz fila na madrugada.Além de envol-

ver meninos e homens,os relatos revelam a participação de senhoras e

senhores nos negócios6.



Nos livros emergem figuras ausentes do filme,exclusivamente voltado

aos meninos. Aqui se revela também um pouco da metodologia.

Os depoimentos foram coletados durante turnês de Bill. A cada viagem

para cantar, um contato local leva a equipe a diferentes locações,

onde os apresenta a personagens em potencial. Em cada um desses

lugares, o prestígio artístico de Bill facilitou a entrada. O estranhamento

que a experiência inspira nos dois entrevistadores convive com

uma identificação.Em várias ocasiões,embora estranhos ao meio que

estão descobrindo e descrevendo para o leitor,os realizadores se viram

na mira da polícia. As descrições se aproximam do relato de aventura.



A polícia invariavelmente trata a todos, negros, jovens e pobres, na

mesma chave.Talvez a maior crítica expressa por moradores da periferia,

tratados pela polícia como uma só massa de bandidos em potencial,

seja a da falsa homogeneização do universo da periferia. Os realizadores

culturais reagem em busca da expressão de suas diferenças.



Em contraste com o material escrito,o material filmado selecionado

para compor Falcão restringe. Ele recorta especificamente os meninos,

vigilantes profissionais dos pontos de droga. O “efeito vaselina”,

recurso eletrônico usado na televisão para borrar fisionomias e proteger

a identidade de pessoas entrevistadas, foi usado à exaustão em Falcão

para garantir o anonimato dos meninos que fazem a vigilância

noturna nas regiões de tráfico.Também no espírito de não comprometer

os personagens entrevistados no filme, há poucas referências espaciais

que possibilitem a identificação de bairros e cidades. O resultado

é um filme sem rostos ou lugares definidos.Em certo sentido a antítese

do cinema enquanto promessa de expressão de um realismo ontológico,

como quis Bazin,Falcão se apresenta como um borrão7.



Os meninos personagens do filme expressam visões escabrosas

do mundo,sem perspectiva de futuro,em um presente altamente instável.

Esses meninos aparecem desprovidos de individualidade,

pequenos ícones de um estado hobbesiano que ameaça se instaurar.

Sabemos pelas informações que cercaram a exibição do filme, principalmente

por declarações de Bill no próprio Fantástico, que dos dezessete

meninos entrevistados, dezesseis já estavam mortos quando o

trabalho foi ao ar. Mas o filme não permite distinguir cada um.Como

a escolha do singular Falcão no título sugere, e embora realizado por

pessoas que compartilham a condição de moradores de bairro de periferia,

o filme fala sobre um tipo. Aqueles meninos compartilham um

ofício e uma visão de mundo sem futuro.



O filme trata esse universo comum de maneira não muito diferente

do que Jean Claude Bernardet definiu como “documentário sociológico”

8.Mas aqui não há narrador em off a pronunciar discurso explica-

tivo e genérico sobre um “outro” com o qual não se confunde. Ao contrário,

o filme pretende revelar o ponto de vista “de dentro”,com o qual

os diretores-entrevistadores até certo ponto se identificam.

O filme demonstra que o universo apresentado por uma série de

filmes recentes,produzidos e dirigidos por pessoas “de fora” da condição

de classe e de raça que os realizadores compartilham com os meninos,

não apenas existe, como está reconhecidamente espalhado para

além das fronteiras da periferia carioca.Falcão pode ser lido como a resposta

de moradores da Cidade de Deus ao filme de ficção que captou e

expressou a saga dos meninos do tráfico para o mundo. É como se o

filme de moradores do conjunto habitacional expressasse um todo —

periferias urbanas do Brasil — com o qual a parte — Cidade de Deus

— se sentiu confundida.



Vale aqui uma incursão na história de possíveis interlocuções

entre diferentes tratamentos visuais da pobreza e da violência no

cinema e na televisão no Brasil. Ao contrário da televisão, que com

poucas — embora talvez crescentes — exceções tem se concentrado

em difundir versões glamorosas da vida que a sociedade de consumo

permite, o cinema brasileiro, desde o início de sua história, aborda

situações de pobreza.



Diferentes tratamentos estéticos de temas como pobreza e violência

em situação urbana, especialmente em favelas, marcam transições

relevantes entre períodos da história do cinema brasileiro.Um romantismo

simpático está presente nos filmes que inauguram o cinema

moderno; o cinema novo enfatiza a violência, principalmente no

campo,mas também em meio urbano,em chave alegórica,como forma

de questionar ideologias hegemônicas,desenvolvimentistas e de convivência

pacífica. Mais recentemente, o cinema da retomada associa

violência e pobreza em chave documental9.



A emergência do cinema moderno no Brasil está umbilicalmente

associada à favela carioca. No filme de Nelson Pereira dos Santos Rio

40 graus, de 1955, a favela aparece como uma espécie de reduto: lá

moram a solidariedade e a poesia. Os meninos vendem amendoim

nos principais pontos turísticos do Rio. O movimento de cada um

deles, do alto do morro para um dos pontos de referência turística da

cidade, e de volta para casa, conduz a bela narrativa fragmentada do

filme.Em Rio Zona Norte, segundo filme do diretor, a situação geográfica

é menos bem definida. Espírito da Luz, interpretado por Grande

Otelo, sambista iluminado, poeta sofrido e ingênuo, mora em um

misto de morro e subúrbio.A personagem é vítima de dupla violência:

a violência dos bandidos que lhe rouba o filho, e a violência simbólica

da indústria do rádio, que não o reconhece. Em ambos os casos, o

cinema respira a vida da cidade,saudando em chave romântica10 a cultura

popular musical,negra e enraizada.



Os dois filmes de Nelson Pereira incluem o morro na geografia da

cidade e apresentam com ternura o universo das classes populares,

esse “outro” que o cineasta admira. Já Cinco vezes favela, longa produzido

pelo CPC da UNE com cineastas que faziam parte do núcleo do

cinema novo, é composto de cinco filmes de curta-metragem que se

colocam como instrumento de intervenção, a um só tempo artística e

política, na situação de desigualdade que estrutura a sociedade brasileira

e encontra na favela expressão urbana visualmente contundente.

Em especial no caso do Rio de Janeiro, em cuja geografia de cidade

maravilhosa a desigualdade social se inscreve de maneira dramática

em eixo vertical.



O curta dirigido por Joaquim Pedro de Andrade,Couro de gato,exemplifica

o trabalho com esse eixo vertical. A favela onde mora o comprador

de gatos está situada no alto do morro. É para lá que convergem as

crianças com os animais capturados,pela trilha estreita e íngreme,pela

qual policiais,motoristas e madames não se atrevem a subir.



O eixo vertical como paradigma da relação de classe que estrutura

a cidade é primorosamente explorado no episódio de Leon Hirszman,

Pedreira de S. Diogo.Concebido como exercício eisensteiniano, o curta

vai além da boa dose de esquematismo político que o inspirou.A geometria

de enquadramentos belos e precisos relaciona eixos verticais e

horizontais. A solidariedade entre operários de uma pedreira e moradores

da favela implantada no alto do morro ameaçado pelas explosões

provocadas pela ação empresarial é simbolicamente construída

pela ação de lideranças que enfrentam o desafio de escalar o buraco

escavado para fazer contato com os moradores em risco.No eixo horizontal,

Leon Hirszman relaciona os corpos dos operários da pedreira

com a textura da rocha que ajudam a escavacar e extrair.Duas tomadas

panorâmicas sugerem uma bela relação mimética entre os corpos dos

operários pressionados de encontro à pedra enquanto aguardam a

explosão de cargas de dinamite.



No cinema de Nelson Pereira, como no cinema novo de Joaquim

Pedro, Leon Hirszman, Cacá Diegues e outros que se dedicaram na

época a destrinchar o tema,há uma clara separação entre a voz de quem

fala, o diretor, e a de sobre quem ele fala.Em Nelson Pereira, essa relação

de alteridade convive com a admiração. Em Cinco vezes favela, a

cumplicidade com o universo retratado se expressa em uma intenção

explícita de mobilização.Esse registro engajado é questionado em filmes

do cinema marginal, que radicalizam o ponto de vista autoral do

cineasta,seja ele próximo ao universo retratado,como em trabalhos de

Candeias,ou não,como em Rogério Sganzerla.



Nos anos 1970 e 1980, anos de censura forte, “milagre econômico”,

consolidação da indústria de televisão e crescimento do mercado

de consumo, imagens glamorosas do “país do futuro”, branco e

afluente, dominaram a programação do novo meio. No cinema dessa

época,a favela ficou restrita a filmes experimentais,vídeos associados

a movimentos populares,filmes associados ao cinema marginal como

O Bandido da Luz Vermelha, documentários como Wilsinho da Galiléia,

trabalho censurado de João Batista de Andrade para o Globo Repórter,

ou a filmes independentes ligados a movimentos sociais, como Santa

Marta,duas semanas no morro,de Eduardo Coutinho.



Filmes como Lúcio Flávio e Pixote, de Hector Babenco,abordaram o

universo corrupto e discriminatório das instituições policiais e criminais

brasileiras.Nesses filmes,a pobreza aparece associada à clientela

dessas instituições. A mídia, que emergia na época como elemento

recém-enraizado na sociedade brasileira, aparece como

cúmplice de versões oficiais que acobertam a ação corrupta e discriminatória

de instituições disciplinadoras como reformatórios,

cadeias, delegacias, polícias.



No início dos anos 1990, essa invisibilidade relativa se alterou.

Telejornais vespertinos trouxeram o universo da favela e das periferias

urbanas para a televisão,na chave da violência e do “sensacionalismo”.

Recentemente, a exposição de representações da pobreza, em geral

associada à violência, aumentou e se sofisticou no cinema, processo

que estimula a disputa em torno do controle do que merece e do que

não merece se tornar visível e de acordo com que convenções.



Em 1991,o Aqui,Agora,do SBT,legitimou paisagens urbanas populares

como cenário de reportagens gravadas in loco, por repórteres e

cinegrafistas em movimento. Imagens trêmulas e a respiração ofegante

dos profissionais que sobem o morro em busca de notícia contribuíam

para reforçar a sensação de matérias “quentes”,transmitidas

no calor da hora.Em contraste com o oficialismo da cobertura convencional,

o Aqui,Agora enfatiza assuntos ligados a pequenos conflitos e

crimes localizados.A mudança é estética e de assunto11.Como se sabe,

o telejornal do SBT acabou ainda nos anos 1990, mas fez escola na

Manchete, com repercussão nas atuais Record e Rede TV. Cabe notar

também as modificações que o jornalismo da maior emissora sofreu

nesse período em que as pautas se diversificaram,assim como as pessoas

entrevistadas. As definições do que é notícia se ampliaram para

além das notícias governamentais. Surgiu a possibilidade, ainda

pouco desenvolvida, de um jornalismo não-oficial.



No início dos anos 2000, essas experiências se estenderam à ficção

televisiva em seriados da Rede Record como Turma do gueto ou Vidas

opostas,bem-sucedida novela atualmente em cartaz,ou na Rede Globo,

com o pioneiro Palace II, Cidade dos homens ou Antonia, na linha de

microsséries em co-produção, ou ainda em Central da periferia, programa

de auditório volante que logrou se transformar em janela para a

ampla e diversificada produção cultural que circula na periferia.



No início desse período mais recente, Notícias de uma guerra particular

(1999),documentário de João Moreira Salles feito para a TV a cabo,

incorporando imagens feitas por um telejornal da Rede Manchete,ofereceu

um primeiro olhar reflexivo sobre um universo ainda pouco visível

fora de telejornais populares. Notícias contrasta, com sensibilidade

perturbadora, três perspectivas sobre a violência que tomou conta do

cotidiano no morro:a dos policiais,a dos traficantes e a dos moradores.



Apenas quatro anos depois, Ônibus 174 emerge em um contexto de

plena guerra pelo controle da representação. Exemplo de apropriação

perversa da mídia — cinematográfica e televisiva —, o filme revela a

performance de Sandro do Nascimento para as câmeras. Ao mesmo

tempo em que se abre para depoimentos que constroem a trajetória da

vítima exemplar, o filme revela o processo de construção do protagonista.



Diante das câmeras,Sandro incorpora o estereótipo do menino

pobre,negro e malvado que suas vítimas reféns,assim como os parentes

e conhecidos que contribuíram com seus depoimentos para o

filme, são unânimes em afirmar que ele não era12. Sintomaticamente

vai tirando a máscara até escancarar a cara na janela do ônibus e se dirigir

ao Brasil através das câmeras.



O invasor,Cidade de Deus,Cidade dos homens,Carandiru,O prisioneiro da

grade de ferro são alguns exemplos, entre outros, de uma série de trabalhos

que dialogam entre si na busca por expressar o drama da violência

contemporânea.Espectadores na periferia discutem em que medida,ao

romper o silêncio e a invisibilidade a que os pobres foram em larga

medida relegados,esses filmes contribuem para fixar a imagem do favelado

como marginal. Ao invés de incluí-lo plenamente, reforçariam,

uma vez mais, sua identidade de excluído. Questionam a relativa

homogeneidade da periferia tratada no cinema. Questionam a autoridade

de diretores não oriundos da periferia para tratar do assunto.

Falcão se coloca como elo nessa espécie de cadeia de interlocuções

diretas e indiretas, desiguais e distorcidas. O filme expressa um

debate que desde pelo menos meados dos anos 1990 passa de um

estado latente, sensível nas periferias,para ganhar forma em manifestações

diversas. Do rap denúncia à margem da mídia ao filme denúncia

exibido na mídia.



Esse debate em torno da adequação da representação midiática da

periferia se encontrava em estado latente quando Cidade de Deus, na

esteira de Notícias de uma guerra particular e Palace II,deu forma contundente

a uma perspectiva que associava violência e pobreza, raça e

gênero,como que deslocando para o espaço público e expressando de

maneira ampliada um mito caro à sociedade brasileira.



A profusão de filmes sobre a periferia nos anos 2000 encontrou

uma periferia menos amorfa e reduzida à violência do tráfico do que se

supunha. Palace II, curta para a Rede Globo de televisão, dirigido por

Fernando Meirelles durante a fase de preparação de atores para Cidade

de Deus,apresentou o universo da periferia pela lente do cinema na TV

aberta. MV Bill participou desse esforço. Seu rap Como sobreviver na

favela ajuda a narrar a história.



Palace II toma emprestado o nome pelo qual ficou conhecido o

crime de colarinho-branco para nomear o pequeno golpe fracassado

que Acerola e Laranjinha tentam aplicar em uma dona de casa de uma

favela carioca. Não sabemos qual favela. Pegos em flagrante pelo

marido da dona, um líder do “movimento”, os meninos se vêem em

maus lençóis. Obrigados a levantar recursos para pagar o prejuízo,

passam a noite a massacrar gatos.Pela manhã,a venda da carne que vai

virar churrasco garante o resgate da vida. Planos curtos gravados em

locação,com a agilidade e o tremor “real” que a câmera na mão sugere,

dão o tom.



Mas a seqüência da tortura e morte dos gatos destoa do resto do

filme. Aqui não há locação visível. Os dois meninos exercitam sua

força física contra um fundo preto abstrato. Efeitos eletrônicos como

desfoque e alteração de velocidade impedem — ao mesmo tempo em

que sugerem — visualização explícita de uma violência carnal. Sabemos

que uma luta corporal sangrenta acontece. Respiramos aliviados

quando nos damos conta,já de volta ao registro realista,de que as vítimas

são animais,cuja carne renderá o dinheiro necessário à alforria da

dupla de pequenos heróis sem caráter.



Palace II curiosamente retoma, propositadamente ou não, o foco

nos animais singelamente tratados em Couro de gato. O curta de Joaquim

Pedro descreve cada animal e busca apreender a relação entre ele

e o dono. Gatos de pêlos e cores diferentes circulam em lugares diferentes

e entre pessoas de classe social e ocupação diferente. Os gatos

mais escuros das calçadas de Copacabana contrastam com o gato

branco de pêlo fofo,xodó da madame em cuja mansão reina.Em Palace

II,os meninos não têm respiro para admirar,se envolver ou dividir alimento

com os bichos cuja carne vai redimi-los. A urgência desse cotidiano

tenso se expressa no rap que ilustra o filme. Se quer a carne do

gato, há pouca brecha para o tamborim e o samba.



Talvez porque o cinema esteja livre do constrangimento da audiência

doméstica e aberta que a televisão alcança, Cidade de Deus não

recorre a estilizações como essa que envolve a matança dos gatos no

curta. Fiel ao livro em que se baseia, Cidade de Deus identifica e conta a

história de um conjunto habitacional específico.A definição de tempo

e espaço ajuda a construir a verossimilhança do filme,que se apresenta

como a história de um lugar ao longo do tempo, de sua fundação nos

anos 1960 aos dias de hoje. A verossimilhança do filme é reforçada

pela ausência de atores conhecidos e pela presença física de corpos

com cor, ginga e linguajar da perifa13.



A frase de Marcinho VP, citada na epígrafe deste texto, sugere um

razoável grau de elaboração sobre a interlocução com a mídia: “eu sou

o monstro que vocês criaram”. Diversas obras e diretores elaboram

essa interlocução de maneiras mais ou menos dramáticas.



Apesar de ter participado do início do projeto,conforme se verifica

em Palace II, MV Bill manifestou descontentamento com o resultado

em artigos em que questiona o filme. Seu Meninos do tráfico pode ser

lido como resposta ao hiper-realismo de Cidade de Deus.O aspecto borrão

de Falcão em certo sentido dissolve a definição proposta em Cidade

de Deus para sugerir que aquele universo existe em qualquer periferia

brasileira.E a própria autoria do documentário sugere que aquele universo

convive e concorre com outro menos letal.



De certo modo, as falas dos meninos do filme de MV Bill e Celso

Athayde se assemelham a algumas falas dos meninos de Notícias de uma

guerra particular — há por exemplo no filme de João Moreira Salles

aquele que afirma ainda não ter tido infelizmente a “oportunidade” de

matar um policial. As condutas e visões de mundo que os dois filmes

captam e expressam se aproximam também do universo de Zé

Pequeno, protagonista vilão do filme de Meirelles. Ao pesquisar e

registrar o universo dos meninos que trabalham no tráfico, Bill e

Athayde reforçam a existência,já revelada nesses outros filmes,da difícil

convivência de moradores engajados no movimento com moradores

que evitam se envolver.



A diversidade estética que esses trabalhos carregam expressa diferentes

interações entre realizadores, o universo tratado no filme e

espectadores. Notícias de uma guerra particular desloca informações

sobre a violência cotidiana que o tráfico trouxe às favelas cariocas para

o público de festivais,entre os quais os próprios cineastas,formadores

de opinião e espectadores da televisão a cabo.Cidade de Deus mimetiza

o relato de Paulo Lins bem como a ginga e a linguagem dos meninos —

atores em formação.A apropriação desses rostos e corpos fundamenta

a verossimilhança do filme, que dá forma magistral à construção

mítica do algoz negro e pobre.Sandro do Nascimento seqüestrou primeiro

a mídia televisiva e depois a cinematográfica em Ônibus 174.Filmes

construídos com alguma cumplicidade com o universo do presídio,

mas em diferentes registros de gênero, ficção e documentário, e

com aparatos de produção muito diferentes como Carandiru e Prisioneiro

da grade de ferro, paradoxalmente acabam por tratar os presos de

maneira parecida. Um tratamento destoante porque assumidamente

externo — captado em ângulo agudo, de cima, como o título Da janela

do meu quarto,explicita, exala com poesia a resistência do embate físico

em um enfrentamento corpo-a-corpo14.



Falcão,meninos do tráfico pode ser interpretado como o mais recente

título nessa linhagem,filme quese propõe a revelar esse universo repe-

tidamente denunciado a partir da visão de quem mora na favela e convive

com os meninos do tráfico. Aqui moradores da Cidade de Deus

comparecem como realizadores da empreitada documentária sobre

outras periferias brasileiras. Falcão sugere com contundência que tá

tudo dominado.



Uns com maior, outros com menor intensidade, os filmes dessa

série produziram expressões asfixiantes da vida em bairros pobres das

urbes brasileiras contemporâneas.O partido realista dos filmes é fiel à

gravidade da situação, mas em certo sentido contribui para perpetuála

como espetáculo. Nesse contexto, o borrão sujo e improvisado de

Falcão talvez permita vislumbrar um irrealismo mais produtivo.

A diversificação ainda que relativa dos veículos, aliada à facilidade

de acesso a equipamentos que a tecnologia digital permite,aumenta a

expectativa de participação entre habitantes de favelas e bairros periféricos.



Nos últimos anos, projetos de oficinas de audiovisual vêm

estimulando a formação de núcleos de produção, difusão e ensino na

periferia. Participantes desses núcleos manipulam um repertório de

complexidade crescente, na tentativa de demonstrar que dominam o

conhecimento que imaginam necessário para ser plenamente incluídos

na sociedade. Filmes como Defina-se, de Daniel Hilário da Cidade

Tiradentes, ou O último da fila de Éder Augusto, da Cohab Taipas,

ambos produzidos em oficinas Kinoforum, sugerem que interlocuções

entre cineastas aprendizes de condição social e formação diferente

podem ser produtivos.



Falcão é talvez a expressão mais acabada e conhecida até agora de

uma efervescência cultural inédita que acena com alguma mudança

nas relações entre quem faz e quem consome música, moda, dança e

cinema.Paradoxalmente,ao menos em parte,essa efervescência cultural

contribui para a difusão de construções visuais que associam violência

e desigualdade,reproduzindo estereótipos — de novo,o monstro

a que se refere Marcinho VP — que em certo sentido podem

reforçar o discurso espetacular sobre o medo e inadvertidamente contribuir

para aumentar a violência.



A constatação de que filmes e programas televisivos podem adquirir

significados diferentes, que significados não são univocamente

definidos na produção,está é claro ligada ao debate pós-estruturalista

sobre a multiplicidade invariável do sentido.O projeto de pesquisa no

interior do qual venho refletindo sobre a problemática aqui tratada

promove interações inusitadas entre filmes, realizadores, críticos e

espectadores, tomando o texto como expressão do que chamamos de

disputa pelo controle da produção da representação. Discuto, a partir

desse amplo material, diferentes maneiras heterodoxas de interagir

com meios de comunicação impressos e eletrônicos em um movimento

intenso de disputa pelo controle das representações.No limite,

problematizar arranjos formais concretos em termos que enfatizem

seu caráter de expressão de articulações entre certos sujeitos que procuram,

em alguma medida,controlar os mecanismos de construção de

sua imagem, significa repensar as bases da idéia de “sociedade do

espetáculo” tal como propôs Guy Debord15 e que vem servindo de referência

aos mais diversos trabalhos que a partir de perspectivas teóricas

distintas procuram situar o imaginário no contexto de fenômenos

contemporâneos.



O termo espetáculo isoladamente ou como adjetivo que qualifica as

sociedades contemporâneas aparece freqüentemente como elemento

descritivo,que na falta de explicações orgânicas fundamentadas alude

ao excesso de luzes e imagens, à profusão de informações que satura

espaços públicos dominados por grandes corporações de mídia, que

para além de poderes estatais ou civis estimulam o consumo e definem

as regras do que é ou não notícia; do que merece e do que não merece

ganhar visibilidade.



O livro de Guy Debord foi originalmente publicado em novembro

de 1967.O texto expressa os termos e as formas de uma postura crítica

sintonizada com palavras de ordem libertárias, as formas fragmentadas,

espontâneas,que os movimentos sociais então emergentes anunciavam.

Situa a opressão contemporânea no plano da cultura,onde há

espaço para incorporar manifestações libertárias pela constituição de

subjetividades como propostas pelos movimentos feministas, gays,

étnicos, ecológicos.



O trabalho expressa de maneira sensível diversas expectativas e

posicionamentos que estavam na ordem do dia na década de 1960,em

plena guerra fria pós-stalinista e que ainda não se resolveram.O autor

expressa claramente sua crítica ao chamado “socialismo real”, em

especial nos termos da crítica à burocracia soviética.Tal como os movimentos

que sacudiram a Europa e as Américas nos anos 1960, o livro

procura definir uma posição que escape das limitadas opções dicotômicas

instauradas pela guerra fria.



O espetáculo emerge no pensamento de Debord como noção que

condensa a opressão nas sociedades contemporâneas. A noção de

espetáculo vem carregada de um tom de denúncia pelo que aparece

como domínio das imagens (que poderia talvez encontrar paralelo no

estatuto maldito que a imagem tem em culturas orientais), o que rendeu

ao autor um certo desprezo no campo da cinefilia.



O espetáculo vai se definindo ao longo do texto quase como um pesadelo.

O espetáculo expressa a degradação do mundo real em mera imagem

(p. 18). As definições críticas se avolumam e adquirem um tom

meio fantasmagórico: imagens tornam-se “seres reais e motivações de

um comportamento hipnótico” (p.18). “O espetáculo é a reconstrução

material da realidade religiosa” (p.20).“O espetáculo é o sonho mau da

sociedade moderna aprisionada,que só expressa afinal o desejo de dormir”

(p. 21). “O espetáculo bane qualquer outra fala” (p. 23). “O poder

está na raiz do espetáculo. O espetáculo está associado ao Estado

moderno,entendido como órgão de dominação de classe” (p.24).(Essa

fantasmagoria do poder parece semelhante à maneira pela qual Foucault,

em outra chave, registra o poder — entidade centralizada mas

cujas manifestações são difusas,quase onipresentes.)



A noção de espetáculo tal como descrita por Debord se estabeleceu

quase como um dado, mas descritivo. Vivemos na sociedade do espetáculo,

não há como contestar.O conceito vem à tona especialmente

em momentos em que temos de dar conta de fenômenos midiáticos

que hoje, talvez mais do que nos anos 1960 e 1970, se tornam o

assunto na arena pública.De maneira mais genérica,a noção busca dar

conta da dimensão cotidiana que a presença do jogo midiático impõe

para as relações sociais e políticas.



A noção de sociedade do espetáculo é eficiente. O rótulo funciona

tão bem talvez porque compartilhe um pouco do apelo sensacional que

critica. O termo tem apelo também ante crescente insatisfação com a

crise generalizada das instituições políticas e sociais nas mais diversas

partes do globo.Depois do desmonte dos regimes socialistas,impasses

eleitorais e movimentos bélicos ilegítimos colocam as democracias ocidentais

na berlinda — e com elas a mídia.Instituições essenciais à liberdade

de expressão, à transparência política e administrativa, os órgãos

de imprensa escrita e audiovisual,assim como os veículos de entretenimento,

vêm sendo questionados de maneira crescente.



No Brasil da era Lula, especula-se sobre a responsabilidade da

mídia nos escândalos de corrupção que abalam a legitimidade das instituições

democráticas. Aqui, como alhures, a crítica aos critérios e

maneiras de operar a mídia faz parte da agenda e dos modos de atuação

de movimentos sociais fragmentados,cuja estratégia de ação invariavelmente

supõe uma dimensão performática. A edição recente de

uma caixa contendo os trabalhos fílmicos de Debord repõe o pensamento

do autor que tanto refletiu sobre o estatuto da imagem nas

sociedades contemporâneas em um momento em que a percepção do

caráter de construção cultural das imagens se generaliza.

O texto de Debord é complexo. O autor busca definir dialeticamente

uma noção com implicações teóricas e práticas, nos planos

material e simbólico, econômico e cultural. Sua preocupação em não

reproduzir dicotomias que a teoria marxista superou imprime ao

texto uma bem-vinda dose de ambigüidade,que leituras contemporâneas

mais apressadas acabam por desprezar.



A realidade objetiva está dos dois lados.Assim estabelecida,cada noção

só se fundamenta em sua passagem para o oposto:a realidade surge no espe-

táculo,e o espetáculo é real.Essa alienação recíproca é a essência e a base da

sociedade existente (p.15).



A questão que se coloca aqui é a possibilidade de que a noção de

espetáculo em Debord supõe uma separação estanque entre espectador

e espetáculo e um controle centralizado que dificulta pensar

expressões contemporâneas articuladas para intervir na própria lógica

do espetáculo.



No espetáculo uma parte do mundo se representa diante do mundo que

lhe é superior.O espetáculo nada mais é que a linguagem comum dessa separação.

O que liga os espectadores é apenas uma ligação irreversível com o próprio

centro que os mantém isolados. O espetáculo reúne o separado, mas o

reúne como separado (p.29).



Essa separação que a teoria da sociedade do espetáculo preconizou

talvez necessite ser revista para dar conta da complexidade das disputas

pelo controle da representação que estão em jogo nas arenas públicas

contemporâneas.



Ora,a ação social contemporânea é intrinsecamente performática.

Os exemplos são inúmeros e vão de grandiosas ações de guerrilha

midiática, das quais o atentado de 11 de setembro talvez seja o exemplo

mais pungente,a manifestações de menor escala e repercussão circunscrita,

às ações do crime organizado brasileiro e às inúmeras

expressões fílmicas de irrupções violentas entre movimentos armados

de desobediência civil sem causa programática, além da defesa de

fluxos transnacionais ilegais de armas e drogas, e forças policiais e

parapoliciais corruptas, desacreditadas e fora de controle.



Fisionomias, pessoas, paisagens específicas ganham notoriedade

de acordo com critérios diferentes que definem o que merece e

o que não merece ganhar forma no domínio da expressão visual.O

cinema e a televisão,com suas semelhanças e diferenças,repercutem

ações e criações em larga medida inspiradas com o sentido de repercutir.

A expressão audiovisual tornou-se dimensão estratégica nas

sociedades contemporâneas.



Certos eventos, assuntos, cenários, movimentos e pessoas gozam

de visibilidade pública em certos veículos e de acordo com certas convenções

que regem a construção de filmes e programas televisivos.

Outros eventos, espaços e agentes permanecem invisíveis na cena

pública.Assim,o jogo entre o visível e o invisível vai definindo e redefinindo

os contornos de uma ordem social que insiste em se estruturar

em torno da desigualdade. Os diversos veículos de mídia,

impressa, eletrônica e digital, ocupam posição privilegiada na definição

desses contornos.



Seja no registro da ficção ou do documentário, encontramos nos

filmes mencionados diferentes formas de apropriação dos mecanismos

de produção da visualidade.De diversas maneiras o “outro” a respeito

do qual cada filme fala impregna a textura final do trabalho.Em

busca da superação da posição de “objeto” e na tentativa de exercer

algum controle sobre a constituição de subjetividades, aspirantes a

protagonista participam da disputa pelo controle do que será visível,

como e onde.Em outras palavras,reconhecem a política — e indagam

sobre a poética — das formas visuais.



Propostas técnicas ousadas e inovadoras no âmbito da ordem jurídica,

como a descriminalização do consumo de drogas ou a legalização

do tráfico, são essenciais.Trabalhar e retrabalhar expressões cinematográficas

e televisivas desse caos pode ajudar a forjar essas e outras

formas de enfrentamento.



Diante do desgaste do Estado e da política partidária, a cultura se

afirma como espaço privilegiado de profissionalização e expansão da

cidadania. Exemplos concretos apontam para a notoriedade conquistada

por moradores de favela engajados na disputa pelo que

merece se tornar visível.O hip-hop,o futebol feminino,rádios comunitárias

e bibliotecas exemplificam diferentes maneiras pelas quais

favelados e moradores de bairros pobres ganham visibilidade. A chamada

literatura marginal vem se afirmando como produção autóctone,

inédita em língua escrita, que compartilha com o hip-hop

nacional e estrangeiro a crítica radical à exclusão, especialmente tal

como expressa na mídia institucional.



O caso das expressões cinematográficas e televisivas da violência

talvez seja paradigmático para se especular sobre essas múltiplas relações.

A violência ou as diversas formas de violência podem ser pensadas

como experiências sociais liminares, espaços que resistem a ordenamentos

e explicações,espaços privilegiados para a criação de sentido16.



A dimensão performática entendida como elemento intrínseco à

vida social nos obriga a redefinir noções usuais que interpretam o

cinema e a televisão como dimensões relativamente desprovidas de

expressão própria,ou,no outro extremo,como dispositivos autônomos

criadores de fantasmagorias virtuais sem existência relevante, o que dá

no mesmo. Imaginar formas estéticas que desarticulem estereótipos e

esvaziem ações violentas permanece um desafio interessante.



Esther Hamburgeré professora do Departamento de Cinema,Rádio e TV da ECA-USP e autora

de O Brasil antenado,a sociedade da novela. Rio de Janeiro:Zahar,2005.


Recebido para publicação

em 6 de julho de 2007.

NOVOS ESTUDOS

CEBRAP

78, julho 2007

pp. 113-128



Notas



[1] Versão de trabalho apresentado

na conferência “Annual Visible Evidence”,

na Cinemateca Brasileira, em

agosto de 2006.Este artigo é produto

de projetos em andamento com financiamentos

CNPq e Fapesp, realizados

em ativa interlocução com Ananda

Stucker,mestranda,e Guilherme Cerqueira

César, graduando, ambos alunos

da ECA-USP. Agradeço também

aos membros do grupo Imagem e

Ciências Sociais do CEM/ CEBRAP.

[2] Uma coletânea recente, States of

violence, editada por Fernando Coronil

e Julie Skurski, traz um panorama

da violência praticada pelo Estado em

diversos países.

[3] O questionamento de Ferréz,

rapper e escritor paulistano,no artigo

“Antropo(hip-hop)logia” (Folha de

S.Paulo, 5 de abril de 2006), é emblemático

dessa linha de argumentação.

[4] Ver por exemplo os artigos de

Alba Zaluar, Maria Rita Kehl e Denis

Rosenfield, além das entrevistas de

João Moreira Salles e Eduardo Coutinho,

no suplemento Mais! (Folha de

S.Paulo,26 de março de 2006).A relevância

do cinema e dos cineastas para

a discussão da violência urbana se

expressa ainda na consulta a esses e

outros diretores nas reportagens

sobre os ataques do PCC em maio de

2006.

[5] As versões divulgadas pela TV e

em DVD são ligeiramente diferentes.

Em ocasiões os diretores anunciaram

um longa-metragem, projeto que até

o presente momento não se realizou.

[6] “Merla no Planalto Central” e

“Merla no Planalto, outra visão”, primeiro

e segundo capítulos de Cabeça

de porco, o primeiro assinado por MV

Bill e o segundo por Celso Athayde,

expressam bem o espírito múltiplo

que anima o livro.

[7] Bazin, Andre. “Ontologia da

imagem fotográfica”. In: O Cinema.

São Paulo:Brasiliense,1991.

[8] Bernardet, Jean Claude. Cineastas

e imagens do povo.São Paulo:Companhia

das Letras,2003.

[9] Para comparações entre o cinema

novo e o cinema da retomada, ver os

artigos de Ismail Xavier,Fernão Ramos

e Ivana Bentes no volume The new Brazilian

cinema, editado por Lúcia Nagib

(Londres: Tauris, 2003). Para a presença

da favela na história do cinema

brasileiro e mundial, ver Rubens

Machado em “Os espaços de exclusão

e de violência no cinema e na TV brasileira”,

conferência proferida no evento

“As Linguagens da Violência”, primeira

edição do Ciclo “Cultura e Sociedade”,

organizado pelo Consulado

Geral da França, SESC e Prefeitura

Municipal de São Paulo, no Teatro

SESC Pompéia,São Paulo,14/9/2001.

[10] Sobre esses filmes de Nelson

Pereira, ver Calil, Carlos Augusto.

Introdução à história do cinema brasileiro

— módulo I.São Paulo:Instituto

Moreira Salles, 2002; Fabris, Mariarosaria.

Nelson Pereira dos Santos: um

olhar neo-realista. São Paulo: Edusp,

1994; Bentes, Ivana. In: Nagib, Lucia

(org.), op. cit., pp. 121-138.

[11] Sobre o Aqui, Agora, ver entrevista

feita por Arnaldo Jabor com os diretores

do programa (Folha de S.Paulo, 22

de junho de 1991).Ver também Bentes,

Ivana. “Aqui, Agora, o cinema do submundo

ou o tele-show da realidade.”

In:Imagens,no- 2,ago.1994,pp.44-49.

[12]Para uma análise detida de

Ônibus 174, ver Hamburger, Esther.

"Políticas da representação: ficção e

documentário em Ônibus 174". In:

Labaki, Amir e Mourão, Maria Dora

(orgs.) O cinema do real. São Paulo:

Cosac Naify,2005, pp.196-215.

[13] Sobre Cidade de Deus, particularmente

sobre o uso da voz over no

filme, mas também sobre essa força

de convencimento quase que imanente

que os corpos desses atores

desconhecidos sugere, ver Xavier,

Ismail. "Corrosão social, pragmatismo

e ressentimento". Novos Estudos

Cebrap,no- 75, jul.2006.

[14] Ver Hamburger, Esther, op. cit; e

tambem “Políticas da representação."

Contracampo 8, pp. 49-60, 2003; e

“Construindo representações verossímeis."

Revista IDE 42,2006.

[15] Debord, Guy. A sociedade do

espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,

2002.

[16]Ver Taussig,M. Shamanism, colonialism

and the wild man. Chicago:

University of Chicago Press, 1987.O

autor concebe a violência como uma

espécie de linguagem que forja sentido

no encontro colonial.