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Resumen: O artigo analisa obras recentes de ficção ou documentário que acentuaram a presença visual de cidadãos pobres, negros,moradores de favelas e bairros de periferia no cinema e na televisão brasileiros. Ao trazer esse universo à atenção pública, esses filmes intensificaram e estimularam uma disputa pelo controle da visualidade,pela definição de que assuntos e personagens ganharão expressão audiovisual, como e onde,elemento estratégico na definição da ordem (ou desordem) contemporânea.
Descriptores Tematicos: Cine, Violencia, Pobreza, Marginalidad, Television, Factores culturales, Zonas urbanas, Periferia, Cinema, Pobreza, Violência, Cinema, Poverty, Violence, Marginality, Cultural factors, Urban areas, Periphery, Brasil
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Violência e Pobreza no Cinema Brasileiro Recente
Reflexões sobre a idéia de espetáculo1
Esther Hamburger
Eu sou um mito.Foi a imprensa que fez esse mito.
Eu sou o monstro que vocês criaram.
Márcio Amaro de Oliveira, o traficante Marcinho VP,
aos jornalistas que acompanharam sua prisão.
O crescimento da violência entre forças estatais e
paraestatais assusta.Nos anos 1990,uma série de massacres impetrados
por forças policiais ou de polícia paralela marcou o processo de
redemocratização.Nos anos 2000,o crime organizado passa a desenvolver
ações de guerrilha urbana como “arrastões”,toques de recolher,
ataques a ônibus e delegacias policiais.
Esse tipo de violência não é prerrogativa brasileira.Há uma profusão
de estudos sobre os mais diferentes casos de violência estatal e de
grupos organizados na Colômbia, Venezuela, México, para não falar
do Oriente Médio, talvez o maior barril de pólvora do novo milênio2.
Há relativamente pouca atenção, no entanto, ao elemento que nos
interessa: o papel que a visualidade — especificamente a visualidade
televisiva e cinematográfica — desempenha nessas dinâmicas.Na fronteira
das ciências sociais com os estudos de cinema e televisão, a idéia é
especular sobre os jogos simultaneamente políticos e estéticos que vão
definindo os contornos do universo do que merece se tornar visível.
Filmes tão diversos como Notícias de uma guerra particular (1999),
Palace II (2000), Cidade de Deus (2002), O invasor (2003), Ônibus 174
(2003),Cidade dos homens (2003),entre outros,e recentemente Falcão,
meninos do tráfico (2006), documentário concebido e dirigido por MV
Bill e Celso Athayde,moradores de Cidade de Deus,são alguns exemplos
de obras de ficção ou documentário que acentuaram a presença
visual de cidadãos pobres, negros, moradores de favelas e bairros de
periferia no cinema e na televisão brasileiros.Ao trazer esse universo à
atenção pública, esses filmes intensificaram e estimularam o que
chamo de disputa pelo controle da visualidade,pela definição de que assuntos e
personagens ganharão expressão audiovisual,como e onde,elemento estratégico
na definição da ordem, e/ou da desordem,contemporânea.
Nessa periferia pouco acostumada à exposição, a visibilidade estimulou
uma reação crítica contundente. A epígrafe deste texto cita
Marcinho VP,personagem incógnita do filme de João Salles,que disse
aos jornalistas que cobriam sua prisão: “eu sou o monstro que vocês
criaram”. A frase revela sensibilidade crítica para o jogo de espelhos
que define personalidades mais ou menos estereotipadas e que Guy
Debord, cineasta (ou anticineasta) e filósofo francês cujo livro ficou
conhecido com os movimentos de maio de 1968 na França, definiu
como sociedade do espetáculo.
Este texto levanta questões sobre a adequação do que se convencionou
denominar sociedade do espetáculo para entender ações sociais
performáticas e performances audiovisuais calcadas no real, mecanismos
intrínsecos à produção cultural contemporânea. A idéia é discutir
em que medida o conceito ajuda a compreender disputas pelo controle
e apropriação dos mecanismos de produção da visualidade em situações
de interlocução entre sujeito e objeto,palco e platéia.
Falcão,meninos do tráfico,documentário dirigido pelo rapper MV Bill
e por seu empresário, Celso Athayde, exibido no Fantástico em 19 de
março de 2006,chocou o país.Gravado ao longo de anos em diversas
periferias brasileiras, o documentário foge da expressão limpa, direta
e bem-acabada que vem caracterizando a produção fílmica sobre o
assunto.Falcão sugere, como a situação à qual ele se refere,umembaço.
A repercussão do filme contemplou a discussão sobre a legitimidade
da veiculação na Rede Globo daquelas imagens,colhidas por rappers,
produtores de canções de protesto contra a mídia,moradores da
Cidade de Deus, expoentes da Central Única das Favelas (Cufa)3.O
debate girou em torno da novidade das informações trazidas pelo
filme.A oportunidade da veiculação de um filme exclusivamente sobre
a violência e a ausência de soluções para o problema foram também
temas de discussão4. Pouco se falou sobre o filme em si, ou sobre sua
interlocução com outros trabalhos que na TV ou no cinema romperam
a relativa invisibilidade que encobriu a pobreza e a violência nos anos
1970 e 1980,anos de consolidação da indústria de TV e do mercado de
consumo no Brasil. Pouco se falou das interlocuções de Falcão com
outras realizações televisivas e cinematográficas que a partir dos anos
1990 desencadearam uma sucessão de proposições que reelaboram o
lugar das periferias e favelas no universo virtual do que é visível, lócus
privilegiado da sociedade contemporânea.
Falcão é escuro, cheio de sombras e silhuetas. Planos fechados de
fragmentos do corpo ajudam a criar um clima claustrofóbico. Mãos
disparam foguetes para alertar sobre a presença da polícia,preparam a
droga ou manipulam armas.Pernas e pés se deslocam na noite,hora de
vigília,horário de falcão.Fisionomias deformadas em primeiro plano,
dissolvidas eletronicamente, produzem um efeito pictórico soturno
como uma tela de Francis Bacon.
O borrão que domina os rostos contrasta com a nitidez remanescente
em órgãos dos sentidos como olhos e bocas.Lábios finos e afiados
em faces dissolvidas pronunciam prognósticos monstruosos: “só vou
descansar quando morrer”,diz um garoto prematuramente exausto;“se
eu morrer nasce outro igual a mim”,acrescenta outro menino,ciente da
insignificância de sua individualidade, mas, ao mesmo tempo, da força
perversamente assustadora de sua pessoa, travestida de uma suposta
permanência inevitável dessa infância aberrante.
Híbrido de televisão e cinema, Falcão pode ser interpretado como
mais um elo em uma sucessão de produções visuais que focalizaram as
periferias de diferentes formas e a partir de diferentes pontos de vista.
Sabemos que no Brasil há pouco espaço para documentários — gênero
principalmente televisivo em outros países.Canais a cabo e canais públicos
abrem espaço bastante limitado para a difusão de documentários.
Gravado ao longo de anos, em vídeo digital com estrutura semiprofissional
e qualidade técnica correspondente,o documentário que
hoje conhecemos tem cerca de uma hora de duração. Divulgado na
televisão, o filme foi distribuído em DVD em estrutura informal,com
os créditos do Fantástico. A versão vendida em eventos dos quais os
diretores participam incorpora as vinheta de abertura e conclusão do
principal programa de televisão dominical do país. É como se o filme
fosse o registro de uma ação que inclui a pesquisa registrada em vídeo,
com os meninos nas periferias do Brasil,mas também a veiculação do
trabalho durante quase uma hora sem interrupções em horário nobre
na TV aberta — transmissão inédita pela duração,ausência de intervalos
e pelo fato de que o material resulta de gravação independente,editada
para a TV e aprovada pelos realizadores5.
O filme começa com uma imagem fora do padrão que prevalece no
correr do trabalho. Um plano de Bill dentro de um carro em movimento
em direção a uma estrada. Vemos a placa verde e branca da
estrada sinalizando que estamos em Brasília. O realizador explica o
projeto:mostrar os meninos das periferias brasileiras a partir da perspectiva
deles, como vítimas de uma realidade social cruel.
A imagem nítida, iluminada pela luz do dia e de corpo inteiro de
Bill, contrasta com o embaço que envolve os irmãos falcões, protagonistas
de vidas sombrias, encapsuladas em aventuras na maioria das
vezes fatais. O artista se apresenta como irmão, solidário com os
meninos,mas ao mesmo tempo sujeito de uma trajetória diferente da
deles.Sua iniciativa de filmar e expor o universo dos meninos constrói
uma relação de alteridade no interior mesmo do universo dos meninos
negros moradores das periferias pobres.
MV Bill e Celso Athayde fizeram também dois livros associados à
pesquisa que resultou no filme. Em Cabeça de porco,de 2003, dividem
a autoria com Luiz Eduardo Soares.Falcão,meninos do tráfico, de 2006,
é assinado somente pelos dois.Os relatos em linguagem escrita acrescentam
sumo aos depoimentos do filme.Como um caderno de campo,
aqui os rappers investidos da função de entrevistadores descrevem
lugares, identificam cidades, deixam rolar seu próprio espanto diante
das personagens que conheceram na empreitada.
Os autores expressam sua relação ao mesmo tempo de estranhamento
e reconhecimento do universo das periferias visitadas. No
filme, esse estranhamento se manifesta no contraste entre a figura
nítida, explícita, lícita e vitoriosa de Bill e o embaço que envolve os
meninos do tráfico. No livro, sobretudo no primeiro, os autores revelam
outros aspectos do universo pesquisado, trabalhando a ambigüidade
de sua posição de negros moradores de Cidade de Deus,que não
vivem do “movimento” e constroem relações de alteridade com esse
universo ainda mais explícitas.
A linguagem escrita permite detalhe na descrição de figuras e lugares
sem ameaçar a segurança das pessoas mencionadas.Há uma variedade
de drogas. Há uma variedade de personagens envolvidas com o
processamento e venda dessas drogas que vai muito além dos meninos
retratados no filme. Famílias que trabalham juntas no negócio.
Quando muitos membros da família estão presos, sobra uma mãe ou
uma avó a cuidar da clientela que faz fila na madrugada.Além de envol-
ver meninos e homens,os relatos revelam a participação de senhoras e
senhores nos negócios6.
Nos livros emergem figuras ausentes do filme,exclusivamente voltado
aos meninos. Aqui se revela também um pouco da metodologia.
Os depoimentos foram coletados durante turnês de Bill. A cada viagem
para cantar, um contato local leva a equipe a diferentes locações,
onde os apresenta a personagens em potencial. Em cada um desses
lugares, o prestígio artístico de Bill facilitou a entrada. O estranhamento
que a experiência inspira nos dois entrevistadores convive com
uma identificação.Em várias ocasiões,embora estranhos ao meio que
estão descobrindo e descrevendo para o leitor,os realizadores se viram
na mira da polícia. As descrições se aproximam do relato de aventura.
A polícia invariavelmente trata a todos, negros, jovens e pobres, na
mesma chave.Talvez a maior crítica expressa por moradores da periferia,
tratados pela polícia como uma só massa de bandidos em potencial,
seja a da falsa homogeneização do universo da periferia. Os realizadores
culturais reagem em busca da expressão de suas diferenças.
Em contraste com o material escrito,o material filmado selecionado
para compor Falcão restringe. Ele recorta especificamente os meninos,
vigilantes profissionais dos pontos de droga. O “efeito vaselina”,
recurso eletrônico usado na televisão para borrar fisionomias e proteger
a identidade de pessoas entrevistadas, foi usado à exaustão em Falcão
para garantir o anonimato dos meninos que fazem a vigilância
noturna nas regiões de tráfico.Também no espírito de não comprometer
os personagens entrevistados no filme, há poucas referências espaciais
que possibilitem a identificação de bairros e cidades. O resultado
é um filme sem rostos ou lugares definidos.Em certo sentido a antítese
do cinema enquanto promessa de expressão de um realismo ontológico,
como quis Bazin,Falcão se apresenta como um borrão7.
Os meninos personagens do filme expressam visões escabrosas
do mundo,sem perspectiva de futuro,em um presente altamente instável.
Esses meninos aparecem desprovidos de individualidade,
pequenos ícones de um estado hobbesiano que ameaça se instaurar.
Sabemos pelas informações que cercaram a exibição do filme, principalmente
por declarações de Bill no próprio Fantástico, que dos dezessete
meninos entrevistados, dezesseis já estavam mortos quando o
trabalho foi ao ar. Mas o filme não permite distinguir cada um.Como
a escolha do singular Falcão no título sugere, e embora realizado por
pessoas que compartilham a condição de moradores de bairro de periferia,
o filme fala sobre um tipo. Aqueles meninos compartilham um
ofício e uma visão de mundo sem futuro.
O filme trata esse universo comum de maneira não muito diferente
do que Jean Claude Bernardet definiu como “documentário sociológico”
8.Mas aqui não há narrador em off a pronunciar discurso explica-
tivo e genérico sobre um “outro” com o qual não se confunde. Ao contrário,
o filme pretende revelar o ponto de vista “de dentro”,com o qual
os diretores-entrevistadores até certo ponto se identificam.
O filme demonstra que o universo apresentado por uma série de
filmes recentes,produzidos e dirigidos por pessoas “de fora” da condição
de classe e de raça que os realizadores compartilham com os meninos,
não apenas existe, como está reconhecidamente espalhado para
além das fronteiras da periferia carioca.Falcão pode ser lido como a resposta
de moradores da Cidade de Deus ao filme de ficção que captou e
expressou a saga dos meninos do tráfico para o mundo. É como se o
filme de moradores do conjunto habitacional expressasse um todo —
periferias urbanas do Brasil — com o qual a parte — Cidade de Deus
— se sentiu confundida.
Vale aqui uma incursão na história de possíveis interlocuções
entre diferentes tratamentos visuais da pobreza e da violência no
cinema e na televisão no Brasil. Ao contrário da televisão, que com
poucas — embora talvez crescentes — exceções tem se concentrado
em difundir versões glamorosas da vida que a sociedade de consumo
permite, o cinema brasileiro, desde o início de sua história, aborda
situações de pobreza.
Diferentes tratamentos estéticos de temas como pobreza e violência
em situação urbana, especialmente em favelas, marcam transições
relevantes entre períodos da história do cinema brasileiro.Um romantismo
simpático está presente nos filmes que inauguram o cinema
moderno; o cinema novo enfatiza a violência, principalmente no
campo,mas também em meio urbano,em chave alegórica,como forma
de questionar ideologias hegemônicas,desenvolvimentistas e de convivência
pacífica. Mais recentemente, o cinema da retomada associa
violência e pobreza em chave documental9.
A emergência do cinema moderno no Brasil está umbilicalmente
associada à favela carioca. No filme de Nelson Pereira dos Santos Rio
40 graus, de 1955, a favela aparece como uma espécie de reduto: lá
moram a solidariedade e a poesia. Os meninos vendem amendoim
nos principais pontos turísticos do Rio. O movimento de cada um
deles, do alto do morro para um dos pontos de referência turística da
cidade, e de volta para casa, conduz a bela narrativa fragmentada do
filme.Em Rio Zona Norte, segundo filme do diretor, a situação geográfica
é menos bem definida. Espírito da Luz, interpretado por Grande
Otelo, sambista iluminado, poeta sofrido e ingênuo, mora em um
misto de morro e subúrbio.A personagem é vítima de dupla violência:
a violência dos bandidos que lhe rouba o filho, e a violência simbólica
da indústria do rádio, que não o reconhece. Em ambos os casos, o
cinema respira a vida da cidade,saudando em chave romântica10 a cultura
popular musical,negra e enraizada.
Os dois filmes de Nelson Pereira incluem o morro na geografia da
cidade e apresentam com ternura o universo das classes populares,
esse “outro” que o cineasta admira. Já Cinco vezes favela, longa produzido
pelo CPC da UNE com cineastas que faziam parte do núcleo do
cinema novo, é composto de cinco filmes de curta-metragem que se
colocam como instrumento de intervenção, a um só tempo artística e
política, na situação de desigualdade que estrutura a sociedade brasileira
e encontra na favela expressão urbana visualmente contundente.
Em especial no caso do Rio de Janeiro, em cuja geografia de cidade
maravilhosa a desigualdade social se inscreve de maneira dramática
em eixo vertical.
O curta dirigido por Joaquim Pedro de Andrade,Couro de gato,exemplifica
o trabalho com esse eixo vertical. A favela onde mora o comprador
de gatos está situada no alto do morro. É para lá que convergem as
crianças com os animais capturados,pela trilha estreita e íngreme,pela
qual policiais,motoristas e madames não se atrevem a subir.
O eixo vertical como paradigma da relação de classe que estrutura
a cidade é primorosamente explorado no episódio de Leon Hirszman,
Pedreira de S. Diogo.Concebido como exercício eisensteiniano, o curta
vai além da boa dose de esquematismo político que o inspirou.A geometria
de enquadramentos belos e precisos relaciona eixos verticais e
horizontais. A solidariedade entre operários de uma pedreira e moradores
da favela implantada no alto do morro ameaçado pelas explosões
provocadas pela ação empresarial é simbolicamente construída
pela ação de lideranças que enfrentam o desafio de escalar o buraco
escavado para fazer contato com os moradores em risco.No eixo horizontal,
Leon Hirszman relaciona os corpos dos operários da pedreira
com a textura da rocha que ajudam a escavacar e extrair.Duas tomadas
panorâmicas sugerem uma bela relação mimética entre os corpos dos
operários pressionados de encontro à pedra enquanto aguardam a
explosão de cargas de dinamite.
No cinema de Nelson Pereira, como no cinema novo de Joaquim
Pedro, Leon Hirszman, Cacá Diegues e outros que se dedicaram na
época a destrinchar o tema,há uma clara separação entre a voz de quem
fala, o diretor, e a de sobre quem ele fala.Em Nelson Pereira, essa relação
de alteridade convive com a admiração. Em Cinco vezes favela, a
cumplicidade com o universo retratado se expressa em uma intenção
explícita de mobilização.Esse registro engajado é questionado em filmes
do cinema marginal, que radicalizam o ponto de vista autoral do
cineasta,seja ele próximo ao universo retratado,como em trabalhos de
Candeias,ou não,como em Rogério Sganzerla.
Nos anos 1970 e 1980, anos de censura forte, “milagre econômico”,
consolidação da indústria de televisão e crescimento do mercado
de consumo, imagens glamorosas do “país do futuro”, branco e
afluente, dominaram a programação do novo meio. No cinema dessa
época,a favela ficou restrita a filmes experimentais,vídeos associados
a movimentos populares,filmes associados ao cinema marginal como
O Bandido da Luz Vermelha, documentários como Wilsinho da Galiléia,
trabalho censurado de João Batista de Andrade para o Globo Repórter,
ou a filmes independentes ligados a movimentos sociais, como Santa
Marta,duas semanas no morro,de Eduardo Coutinho.
Filmes como Lúcio Flávio e Pixote, de Hector Babenco,abordaram o
universo corrupto e discriminatório das instituições policiais e criminais
brasileiras.Nesses filmes,a pobreza aparece associada à clientela
dessas instituições. A mídia, que emergia na época como elemento
recém-enraizado na sociedade brasileira, aparece como
cúmplice de versões oficiais que acobertam a ação corrupta e discriminatória
de instituições disciplinadoras como reformatórios,
cadeias, delegacias, polícias.
No início dos anos 1990, essa invisibilidade relativa se alterou.
Telejornais vespertinos trouxeram o universo da favela e das periferias
urbanas para a televisão,na chave da violência e do “sensacionalismo”.
Recentemente, a exposição de representações da pobreza, em geral
associada à violência, aumentou e se sofisticou no cinema, processo
que estimula a disputa em torno do controle do que merece e do que
não merece se tornar visível e de acordo com que convenções.
Em 1991,o Aqui,Agora,do SBT,legitimou paisagens urbanas populares
como cenário de reportagens gravadas in loco, por repórteres e
cinegrafistas em movimento. Imagens trêmulas e a respiração ofegante
dos profissionais que sobem o morro em busca de notícia contribuíam
para reforçar a sensação de matérias “quentes”,transmitidas
no calor da hora.Em contraste com o oficialismo da cobertura convencional,
o Aqui,Agora enfatiza assuntos ligados a pequenos conflitos e
crimes localizados.A mudança é estética e de assunto11.Como se sabe,
o telejornal do SBT acabou ainda nos anos 1990, mas fez escola na
Manchete, com repercussão nas atuais Record e Rede TV. Cabe notar
também as modificações que o jornalismo da maior emissora sofreu
nesse período em que as pautas se diversificaram,assim como as pessoas
entrevistadas. As definições do que é notícia se ampliaram para
além das notícias governamentais. Surgiu a possibilidade, ainda
pouco desenvolvida, de um jornalismo não-oficial.
No início dos anos 2000, essas experiências se estenderam à ficção
televisiva em seriados da Rede Record como Turma do gueto ou Vidas
opostas,bem-sucedida novela atualmente em cartaz,ou na Rede Globo,
com o pioneiro Palace II, Cidade dos homens ou Antonia, na linha de
microsséries em co-produção, ou ainda em Central da periferia, programa
de auditório volante que logrou se transformar em janela para a
ampla e diversificada produção cultural que circula na periferia.
No início desse período mais recente, Notícias de uma guerra particular
(1999),documentário de João Moreira Salles feito para a TV a cabo,
incorporando imagens feitas por um telejornal da Rede Manchete,ofereceu
um primeiro olhar reflexivo sobre um universo ainda pouco visível
fora de telejornais populares. Notícias contrasta, com sensibilidade
perturbadora, três perspectivas sobre a violência que tomou conta do
cotidiano no morro:a dos policiais,a dos traficantes e a dos moradores.
Apenas quatro anos depois, Ônibus 174 emerge em um contexto de
plena guerra pelo controle da representação. Exemplo de apropriação
perversa da mídia — cinematográfica e televisiva —, o filme revela a
performance de Sandro do Nascimento para as câmeras. Ao mesmo
tempo em que se abre para depoimentos que constroem a trajetória da
vítima exemplar, o filme revela o processo de construção do protagonista.
Diante das câmeras,Sandro incorpora o estereótipo do menino
pobre,negro e malvado que suas vítimas reféns,assim como os parentes
e conhecidos que contribuíram com seus depoimentos para o
filme, são unânimes em afirmar que ele não era12. Sintomaticamente
vai tirando a máscara até escancarar a cara na janela do ônibus e se dirigir
ao Brasil através das câmeras.
O invasor,Cidade de Deus,Cidade dos homens,Carandiru,O prisioneiro da
grade de ferro são alguns exemplos, entre outros, de uma série de trabalhos
que dialogam entre si na busca por expressar o drama da violência
contemporânea.Espectadores na periferia discutem em que medida,ao
romper o silêncio e a invisibilidade a que os pobres foram em larga
medida relegados,esses filmes contribuem para fixar a imagem do favelado
como marginal. Ao invés de incluí-lo plenamente, reforçariam,
uma vez mais, sua identidade de excluído. Questionam a relativa
homogeneidade da periferia tratada no cinema. Questionam a autoridade
de diretores não oriundos da periferia para tratar do assunto.
Falcão se coloca como elo nessa espécie de cadeia de interlocuções
diretas e indiretas, desiguais e distorcidas. O filme expressa um
debate que desde pelo menos meados dos anos 1990 passa de um
estado latente, sensível nas periferias,para ganhar forma em manifestações
diversas. Do rap denúncia à margem da mídia ao filme denúncia
exibido na mídia.
Esse debate em torno da adequação da representação midiática da
periferia se encontrava em estado latente quando Cidade de Deus, na
esteira de Notícias de uma guerra particular e Palace II,deu forma contundente
a uma perspectiva que associava violência e pobreza, raça e
gênero,como que deslocando para o espaço público e expressando de
maneira ampliada um mito caro à sociedade brasileira.
A profusão de filmes sobre a periferia nos anos 2000 encontrou
uma periferia menos amorfa e reduzida à violência do tráfico do que se
supunha. Palace II, curta para a Rede Globo de televisão, dirigido por
Fernando Meirelles durante a fase de preparação de atores para Cidade
de Deus,apresentou o universo da periferia pela lente do cinema na TV
aberta. MV Bill participou desse esforço. Seu rap Como sobreviver na
favela ajuda a narrar a história.
Palace II toma emprestado o nome pelo qual ficou conhecido o
crime de colarinho-branco para nomear o pequeno golpe fracassado
que Acerola e Laranjinha tentam aplicar em uma dona de casa de uma
favela carioca. Não sabemos qual favela. Pegos em flagrante pelo
marido da dona, um líder do “movimento”, os meninos se vêem em
maus lençóis. Obrigados a levantar recursos para pagar o prejuízo,
passam a noite a massacrar gatos.Pela manhã,a venda da carne que vai
virar churrasco garante o resgate da vida. Planos curtos gravados em
locação,com a agilidade e o tremor “real” que a câmera na mão sugere,
dão o tom.
Mas a seqüência da tortura e morte dos gatos destoa do resto do
filme. Aqui não há locação visível. Os dois meninos exercitam sua
força física contra um fundo preto abstrato. Efeitos eletrônicos como
desfoque e alteração de velocidade impedem — ao mesmo tempo em
que sugerem — visualização explícita de uma violência carnal. Sabemos
que uma luta corporal sangrenta acontece. Respiramos aliviados
quando nos damos conta,já de volta ao registro realista,de que as vítimas
são animais,cuja carne renderá o dinheiro necessário à alforria da
dupla de pequenos heróis sem caráter.
Palace II curiosamente retoma, propositadamente ou não, o foco
nos animais singelamente tratados em Couro de gato. O curta de Joaquim
Pedro descreve cada animal e busca apreender a relação entre ele
e o dono. Gatos de pêlos e cores diferentes circulam em lugares diferentes
e entre pessoas de classe social e ocupação diferente. Os gatos
mais escuros das calçadas de Copacabana contrastam com o gato
branco de pêlo fofo,xodó da madame em cuja mansão reina.Em Palace
II,os meninos não têm respiro para admirar,se envolver ou dividir alimento
com os bichos cuja carne vai redimi-los. A urgência desse cotidiano
tenso se expressa no rap que ilustra o filme. Se quer a carne do
gato, há pouca brecha para o tamborim e o samba.
Talvez porque o cinema esteja livre do constrangimento da audiência
doméstica e aberta que a televisão alcança, Cidade de Deus não
recorre a estilizações como essa que envolve a matança dos gatos no
curta. Fiel ao livro em que se baseia, Cidade de Deus identifica e conta a
história de um conjunto habitacional específico.A definição de tempo
e espaço ajuda a construir a verossimilhança do filme,que se apresenta
como a história de um lugar ao longo do tempo, de sua fundação nos
anos 1960 aos dias de hoje. A verossimilhança do filme é reforçada
pela ausência de atores conhecidos e pela presença física de corpos
com cor, ginga e linguajar da perifa13.
A frase de Marcinho VP, citada na epígrafe deste texto, sugere um
razoável grau de elaboração sobre a interlocução com a mídia: “eu sou
o monstro que vocês criaram”. Diversas obras e diretores elaboram
essa interlocução de maneiras mais ou menos dramáticas.
Apesar de ter participado do início do projeto,conforme se verifica
em Palace II, MV Bill manifestou descontentamento com o resultado
em artigos em que questiona o filme. Seu Meninos do tráfico pode ser
lido como resposta ao hiper-realismo de Cidade de Deus.O aspecto borrão
de Falcão em certo sentido dissolve a definição proposta em Cidade
de Deus para sugerir que aquele universo existe em qualquer periferia
brasileira.E a própria autoria do documentário sugere que aquele universo
convive e concorre com outro menos letal.
De certo modo, as falas dos meninos do filme de MV Bill e Celso
Athayde se assemelham a algumas falas dos meninos de Notícias de uma
guerra particular — há por exemplo no filme de João Moreira Salles
aquele que afirma ainda não ter tido infelizmente a “oportunidade” de
matar um policial. As condutas e visões de mundo que os dois filmes
captam e expressam se aproximam também do universo de Zé
Pequeno, protagonista vilão do filme de Meirelles. Ao pesquisar e
registrar o universo dos meninos que trabalham no tráfico, Bill e
Athayde reforçam a existência,já revelada nesses outros filmes,da difícil
convivência de moradores engajados no movimento com moradores
que evitam se envolver.
A diversidade estética que esses trabalhos carregam expressa diferentes
interações entre realizadores, o universo tratado no filme e
espectadores. Notícias de uma guerra particular desloca informações
sobre a violência cotidiana que o tráfico trouxe às favelas cariocas para
o público de festivais,entre os quais os próprios cineastas,formadores
de opinião e espectadores da televisão a cabo.Cidade de Deus mimetiza
o relato de Paulo Lins bem como a ginga e a linguagem dos meninos —
atores em formação.A apropriação desses rostos e corpos fundamenta
a verossimilhança do filme, que dá forma magistral à construção
mítica do algoz negro e pobre.Sandro do Nascimento seqüestrou primeiro
a mídia televisiva e depois a cinematográfica em Ônibus 174.Filmes
construídos com alguma cumplicidade com o universo do presídio,
mas em diferentes registros de gênero, ficção e documentário, e
com aparatos de produção muito diferentes como Carandiru e Prisioneiro
da grade de ferro, paradoxalmente acabam por tratar os presos de
maneira parecida. Um tratamento destoante porque assumidamente
externo — captado em ângulo agudo, de cima, como o título Da janela
do meu quarto,explicita, exala com poesia a resistência do embate físico
em um enfrentamento corpo-a-corpo14.
Falcão,meninos do tráfico pode ser interpretado como o mais recente
título nessa linhagem,filme quese propõe a revelar esse universo repe-
tidamente denunciado a partir da visão de quem mora na favela e convive
com os meninos do tráfico. Aqui moradores da Cidade de Deus
comparecem como realizadores da empreitada documentária sobre
outras periferias brasileiras. Falcão sugere com contundência que tá
tudo dominado.
Uns com maior, outros com menor intensidade, os filmes dessa
série produziram expressões asfixiantes da vida em bairros pobres das
urbes brasileiras contemporâneas.O partido realista dos filmes é fiel à
gravidade da situação, mas em certo sentido contribui para perpetuála
como espetáculo. Nesse contexto, o borrão sujo e improvisado de
Falcão talvez permita vislumbrar um irrealismo mais produtivo.
A diversificação ainda que relativa dos veículos, aliada à facilidade
de acesso a equipamentos que a tecnologia digital permite,aumenta a
expectativa de participação entre habitantes de favelas e bairros periféricos.
Nos últimos anos, projetos de oficinas de audiovisual vêm
estimulando a formação de núcleos de produção, difusão e ensino na
periferia. Participantes desses núcleos manipulam um repertório de
complexidade crescente, na tentativa de demonstrar que dominam o
conhecimento que imaginam necessário para ser plenamente incluídos
na sociedade. Filmes como Defina-se, de Daniel Hilário da Cidade
Tiradentes, ou O último da fila de Éder Augusto, da Cohab Taipas,
ambos produzidos em oficinas Kinoforum, sugerem que interlocuções
entre cineastas aprendizes de condição social e formação diferente
podem ser produtivos.
Falcão é talvez a expressão mais acabada e conhecida até agora de
uma efervescência cultural inédita que acena com alguma mudança
nas relações entre quem faz e quem consome música, moda, dança e
cinema.Paradoxalmente,ao menos em parte,essa efervescência cultural
contribui para a difusão de construções visuais que associam violência
e desigualdade,reproduzindo estereótipos — de novo,o monstro
a que se refere Marcinho VP — que em certo sentido podem
reforçar o discurso espetacular sobre o medo e inadvertidamente contribuir
para aumentar a violência.
A constatação de que filmes e programas televisivos podem adquirir
significados diferentes, que significados não são univocamente
definidos na produção,está é claro ligada ao debate pós-estruturalista
sobre a multiplicidade invariável do sentido.O projeto de pesquisa no
interior do qual venho refletindo sobre a problemática aqui tratada
promove interações inusitadas entre filmes, realizadores, críticos e
espectadores, tomando o texto como expressão do que chamamos de
disputa pelo controle da produção da representação. Discuto, a partir
desse amplo material, diferentes maneiras heterodoxas de interagir
com meios de comunicação impressos e eletrônicos em um movimento
intenso de disputa pelo controle das representações.No limite,
problematizar arranjos formais concretos em termos que enfatizem
seu caráter de expressão de articulações entre certos sujeitos que procuram,
em alguma medida,controlar os mecanismos de construção de
sua imagem, significa repensar as bases da idéia de “sociedade do
espetáculo” tal como propôs Guy Debord15 e que vem servindo de referência
aos mais diversos trabalhos que a partir de perspectivas teóricas
distintas procuram situar o imaginário no contexto de fenômenos
contemporâneos.
O termo espetáculo isoladamente ou como adjetivo que qualifica as
sociedades contemporâneas aparece freqüentemente como elemento
descritivo,que na falta de explicações orgânicas fundamentadas alude
ao excesso de luzes e imagens, à profusão de informações que satura
espaços públicos dominados por grandes corporações de mídia, que
para além de poderes estatais ou civis estimulam o consumo e definem
as regras do que é ou não notícia; do que merece e do que não merece
ganhar visibilidade.
O livro de Guy Debord foi originalmente publicado em novembro
de 1967.O texto expressa os termos e as formas de uma postura crítica
sintonizada com palavras de ordem libertárias, as formas fragmentadas,
espontâneas,que os movimentos sociais então emergentes anunciavam.
Situa a opressão contemporânea no plano da cultura,onde há
espaço para incorporar manifestações libertárias pela constituição de
subjetividades como propostas pelos movimentos feministas, gays,
étnicos, ecológicos.
O trabalho expressa de maneira sensível diversas expectativas e
posicionamentos que estavam na ordem do dia na década de 1960,em
plena guerra fria pós-stalinista e que ainda não se resolveram.O autor
expressa claramente sua crítica ao chamado “socialismo real”, em
especial nos termos da crítica à burocracia soviética.Tal como os movimentos
que sacudiram a Europa e as Américas nos anos 1960, o livro
procura definir uma posição que escape das limitadas opções dicotômicas
instauradas pela guerra fria.
O espetáculo emerge no pensamento de Debord como noção que
condensa a opressão nas sociedades contemporâneas. A noção de
espetáculo vem carregada de um tom de denúncia pelo que aparece
como domínio das imagens (que poderia talvez encontrar paralelo no
estatuto maldito que a imagem tem em culturas orientais), o que rendeu
ao autor um certo desprezo no campo da cinefilia.
O espetáculo vai se definindo ao longo do texto quase como um pesadelo.
O espetáculo expressa a degradação do mundo real em mera imagem
(p. 18). As definições críticas se avolumam e adquirem um tom
meio fantasmagórico: imagens tornam-se “seres reais e motivações de
um comportamento hipnótico” (p.18). “O espetáculo é a reconstrução
material da realidade religiosa” (p.20).“O espetáculo é o sonho mau da
sociedade moderna aprisionada,que só expressa afinal o desejo de dormir”
(p. 21). “O espetáculo bane qualquer outra fala” (p. 23). “O poder
está na raiz do espetáculo. O espetáculo está associado ao Estado
moderno,entendido como órgão de dominação de classe” (p.24).(Essa
fantasmagoria do poder parece semelhante à maneira pela qual Foucault,
em outra chave, registra o poder — entidade centralizada mas
cujas manifestações são difusas,quase onipresentes.)
A noção de espetáculo tal como descrita por Debord se estabeleceu
quase como um dado, mas descritivo. Vivemos na sociedade do espetáculo,
não há como contestar.O conceito vem à tona especialmente
em momentos em que temos de dar conta de fenômenos midiáticos
que hoje, talvez mais do que nos anos 1960 e 1970, se tornam o
assunto na arena pública.De maneira mais genérica,a noção busca dar
conta da dimensão cotidiana que a presença do jogo midiático impõe
para as relações sociais e políticas.
A noção de sociedade do espetáculo é eficiente. O rótulo funciona
tão bem talvez porque compartilhe um pouco do apelo sensacional que
critica. O termo tem apelo também ante crescente insatisfação com a
crise generalizada das instituições políticas e sociais nas mais diversas
partes do globo.Depois do desmonte dos regimes socialistas,impasses
eleitorais e movimentos bélicos ilegítimos colocam as democracias ocidentais
na berlinda — e com elas a mídia.Instituições essenciais à liberdade
de expressão, à transparência política e administrativa, os órgãos
de imprensa escrita e audiovisual,assim como os veículos de entretenimento,
vêm sendo questionados de maneira crescente.
No Brasil da era Lula, especula-se sobre a responsabilidade da
mídia nos escândalos de corrupção que abalam a legitimidade das instituições
democráticas. Aqui, como alhures, a crítica aos critérios e
maneiras de operar a mídia faz parte da agenda e dos modos de atuação
de movimentos sociais fragmentados,cuja estratégia de ação invariavelmente
supõe uma dimensão performática. A edição recente de
uma caixa contendo os trabalhos fílmicos de Debord repõe o pensamento
do autor que tanto refletiu sobre o estatuto da imagem nas
sociedades contemporâneas em um momento em que a percepção do
caráter de construção cultural das imagens se generaliza.
O texto de Debord é complexo. O autor busca definir dialeticamente
uma noção com implicações teóricas e práticas, nos planos
material e simbólico, econômico e cultural. Sua preocupação em não
reproduzir dicotomias que a teoria marxista superou imprime ao
texto uma bem-vinda dose de ambigüidade,que leituras contemporâneas
mais apressadas acabam por desprezar.
A realidade objetiva está dos dois lados.Assim estabelecida,cada noção
só se fundamenta em sua passagem para o oposto:a realidade surge no espe-
táculo,e o espetáculo é real.Essa alienação recíproca é a essência e a base da
sociedade existente (p.15).
A questão que se coloca aqui é a possibilidade de que a noção de
espetáculo em Debord supõe uma separação estanque entre espectador
e espetáculo e um controle centralizado que dificulta pensar
expressões contemporâneas articuladas para intervir na própria lógica
do espetáculo.
No espetáculo uma parte do mundo se representa diante do mundo que
lhe é superior.O espetáculo nada mais é que a linguagem comum dessa separação.
O que liga os espectadores é apenas uma ligação irreversível com o próprio
centro que os mantém isolados. O espetáculo reúne o separado, mas o
reúne como separado (p.29).
Essa separação que a teoria da sociedade do espetáculo preconizou
talvez necessite ser revista para dar conta da complexidade das disputas
pelo controle da representação que estão em jogo nas arenas públicas
contemporâneas.
Ora,a ação social contemporânea é intrinsecamente performática.
Os exemplos são inúmeros e vão de grandiosas ações de guerrilha
midiática, das quais o atentado de 11 de setembro talvez seja o exemplo
mais pungente,a manifestações de menor escala e repercussão circunscrita,
às ações do crime organizado brasileiro e às inúmeras
expressões fílmicas de irrupções violentas entre movimentos armados
de desobediência civil sem causa programática, além da defesa de
fluxos transnacionais ilegais de armas e drogas, e forças policiais e
parapoliciais corruptas, desacreditadas e fora de controle.
Fisionomias, pessoas, paisagens específicas ganham notoriedade
de acordo com critérios diferentes que definem o que merece e
o que não merece ganhar forma no domínio da expressão visual.O
cinema e a televisão,com suas semelhanças e diferenças,repercutem
ações e criações em larga medida inspiradas com o sentido de repercutir.
A expressão audiovisual tornou-se dimensão estratégica nas
sociedades contemporâneas.
Certos eventos, assuntos, cenários, movimentos e pessoas gozam
de visibilidade pública em certos veículos e de acordo com certas convenções
que regem a construção de filmes e programas televisivos.
Outros eventos, espaços e agentes permanecem invisíveis na cena
pública.Assim,o jogo entre o visível e o invisível vai definindo e redefinindo
os contornos de uma ordem social que insiste em se estruturar
em torno da desigualdade. Os diversos veículos de mídia,
impressa, eletrônica e digital, ocupam posição privilegiada na definição
desses contornos.
Seja no registro da ficção ou do documentário, encontramos nos
filmes mencionados diferentes formas de apropriação dos mecanismos
de produção da visualidade.De diversas maneiras o “outro” a respeito
do qual cada filme fala impregna a textura final do trabalho.Em
busca da superação da posição de “objeto” e na tentativa de exercer
algum controle sobre a constituição de subjetividades, aspirantes a
protagonista participam da disputa pelo controle do que será visível,
como e onde.Em outras palavras,reconhecem a política — e indagam
sobre a poética — das formas visuais.
Propostas técnicas ousadas e inovadoras no âmbito da ordem jurídica,
como a descriminalização do consumo de drogas ou a legalização
do tráfico, são essenciais.Trabalhar e retrabalhar expressões cinematográficas
e televisivas desse caos pode ajudar a forjar essas e outras
formas de enfrentamento.
Diante do desgaste do Estado e da política partidária, a cultura se
afirma como espaço privilegiado de profissionalização e expansão da
cidadania. Exemplos concretos apontam para a notoriedade conquistada
por moradores de favela engajados na disputa pelo que
merece se tornar visível.O hip-hop,o futebol feminino,rádios comunitárias
e bibliotecas exemplificam diferentes maneiras pelas quais
favelados e moradores de bairros pobres ganham visibilidade. A chamada
literatura marginal vem se afirmando como produção autóctone,
inédita em língua escrita, que compartilha com o hip-hop
nacional e estrangeiro a crítica radical à exclusão, especialmente tal
como expressa na mídia institucional.
O caso das expressões cinematográficas e televisivas da violência
talvez seja paradigmático para se especular sobre essas múltiplas relações.
A violência ou as diversas formas de violência podem ser pensadas
como experiências sociais liminares, espaços que resistem a ordenamentos
e explicações,espaços privilegiados para a criação de sentido16.
A dimensão performática entendida como elemento intrínseco à
vida social nos obriga a redefinir noções usuais que interpretam o
cinema e a televisão como dimensões relativamente desprovidas de
expressão própria,ou,no outro extremo,como dispositivos autônomos
criadores de fantasmagorias virtuais sem existência relevante, o que dá
no mesmo. Imaginar formas estéticas que desarticulem estereótipos e
esvaziem ações violentas permanece um desafio interessante.
Esther Hamburgeré professora do Departamento de Cinema,Rádio e TV da ECA-USP e autora
de O Brasil antenado,a sociedade da novela. Rio de Janeiro:Zahar,2005.
Recebido para publicação
em 6 de julho de 2007.
NOVOS ESTUDOS
CEBRAP
78, julho 2007
pp. 113-128
Notas
[1] Versão de trabalho apresentado
na conferência “Annual Visible Evidence”,
na Cinemateca Brasileira, em
agosto de 2006.Este artigo é produto
de projetos em andamento com financiamentos
CNPq e Fapesp, realizados
em ativa interlocução com Ananda
Stucker,mestranda,e Guilherme Cerqueira
César, graduando, ambos alunos
da ECA-USP. Agradeço também
aos membros do grupo Imagem e
Ciências Sociais do CEM/ CEBRAP.
[2] Uma coletânea recente, States of
violence, editada por Fernando Coronil
e Julie Skurski, traz um panorama
da violência praticada pelo Estado em
diversos países.
[3] O questionamento de Ferréz,
rapper e escritor paulistano,no artigo
“Antropo(hip-hop)logia” (Folha de
S.Paulo, 5 de abril de 2006), é emblemático
dessa linha de argumentação.
[4] Ver por exemplo os artigos de
Alba Zaluar, Maria Rita Kehl e Denis
Rosenfield, além das entrevistas de
João Moreira Salles e Eduardo Coutinho,
no suplemento Mais! (Folha de
S.Paulo,26 de março de 2006).A relevância
do cinema e dos cineastas para
a discussão da violência urbana se
expressa ainda na consulta a esses e
outros diretores nas reportagens
sobre os ataques do PCC em maio de
2006.
[5] As versões divulgadas pela TV e
em DVD são ligeiramente diferentes.
Em ocasiões os diretores anunciaram
um longa-metragem, projeto que até
o presente momento não se realizou.
[6] “Merla no Planalto Central” e
“Merla no Planalto, outra visão”, primeiro
e segundo capítulos de Cabeça
de porco, o primeiro assinado por MV
Bill e o segundo por Celso Athayde,
expressam bem o espírito múltiplo
que anima o livro.
[7] Bazin, Andre. “Ontologia da
imagem fotográfica”. In: O Cinema.
São Paulo:Brasiliense,1991.
[8] Bernardet, Jean Claude. Cineastas
e imagens do povo.São Paulo:Companhia
das Letras,2003.
[9] Para comparações entre o cinema
novo e o cinema da retomada, ver os
artigos de Ismail Xavier,Fernão Ramos
e Ivana Bentes no volume The new Brazilian
cinema, editado por Lúcia Nagib
(Londres: Tauris, 2003). Para a presença
da favela na história do cinema
brasileiro e mundial, ver Rubens
Machado em “Os espaços de exclusão
e de violência no cinema e na TV brasileira”,
conferência proferida no evento
“As Linguagens da Violência”, primeira
edição do Ciclo “Cultura e Sociedade”,
organizado pelo Consulado
Geral da França, SESC e Prefeitura
Municipal de São Paulo, no Teatro
SESC Pompéia,São Paulo,14/9/2001.
[10] Sobre esses filmes de Nelson
Pereira, ver Calil, Carlos Augusto.
Introdução à história do cinema brasileiro
— módulo I.São Paulo:Instituto
Moreira Salles, 2002; Fabris, Mariarosaria.
Nelson Pereira dos Santos: um
olhar neo-realista. São Paulo: Edusp,
1994; Bentes, Ivana. In: Nagib, Lucia
(org.), op. cit., pp. 121-138.
[11] Sobre o Aqui, Agora, ver entrevista
feita por Arnaldo Jabor com os diretores
do programa (Folha de S.Paulo, 22
de junho de 1991).Ver também Bentes,
Ivana. “Aqui, Agora, o cinema do submundo
ou o tele-show da realidade.”
In:Imagens,no- 2,ago.1994,pp.44-49.
[12]Para uma análise detida de
Ônibus 174, ver Hamburger, Esther.
"Políticas da representação: ficção e
documentário em Ônibus 174". In:
Labaki, Amir e Mourão, Maria Dora
(orgs.) O cinema do real. São Paulo:
Cosac Naify,2005, pp.196-215.
[13] Sobre Cidade de Deus, particularmente
sobre o uso da voz over no
filme, mas também sobre essa força
de convencimento quase que imanente
que os corpos desses atores
desconhecidos sugere, ver Xavier,
Ismail. "Corrosão social, pragmatismo
e ressentimento". Novos Estudos
Cebrap,no- 75, jul.2006.
[14] Ver Hamburger, Esther, op. cit; e
tambem “Políticas da representação."
Contracampo 8, pp. 49-60, 2003; e
“Construindo representações verossímeis."
Revista IDE 42,2006.
[15] Debord, Guy. A sociedade do
espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,
2002.
[16]Ver Taussig,M. Shamanism, colonialism
and the wild man. Chicago:
University of Chicago Press, 1987.O
autor concebe a violência como uma
espécie de linguagem que forja sentido
no encontro colonial.